Nas democracias modernas, a comunicação pública é uma ferramenta indispensável para a transparência e a prestação de contas. No entanto, quando o discurso governativo se converte em encenação teatral nas redes sociais, a fronteira entre marketing governamental e propaganda pessoal torna-se turva.
Em Angola, é cada vez mais comum observarmos gestores públicos em actos de constatação de obras e visitas institucionais, acompanhados por equipas de comunicação com câmaras sempre ligadas, prontas para captar cada gesto e palavra. Essas imagens, posteriormente publicadas nas redes sociais, pretendem mostrar dinamismo e compromisso, mas, em muitos casos, revelam-se meros espetáculos de visibilidade.
O fenómeno levanta uma questão essencial: estamos a assistir à transparência governativa ou apenas à busca por likes e popularidade digital?
1. O que é o Marketing Governamental
O marketing governamental é um instrumento legítimo de gestão pública, voltado para promover políticas, programas e serviços, aproximando o Estado do cidadão. Segundo Philip Kotler e Nancy Lee (2007), ele deve informar, educar e mobilizar a sociedade, sempre com foco no interesse público.
Por exemplo, campanhas de vacinação, de prevenção rodoviária ou de educação ambiental são formas adequadas de marketing governamental, pois produzem valor social e fortalecem a confiança no Estado.
2. Comunicação Institucional ou Espetáculo Político?
A comunicação institucional tem como função informar os cidadãos sobre factos de interesse público de forma clara e objectiva. Contudo, quando o foco da mensagem se desloca da instituição para a figura pessoal do gestor, a comunicação deixa de ser pública e transforma-se em performance política.
Um caso cada vez mais recorrente ilustra bem esta realidade:
> Uma administradora municipal visita um hospital local para verificar anomalias e queixas dos utentes. Durante a visita, com câmara ligada e microfone em punho, ela exibe uma postura severa, ralha com funcionários, exige justificações e dá ordens diante das lentes. O vídeo é publicado nas redes sociais oficiais e pessoais com legendas do tipo: “A administradora em acção! Tolerância zero ao mau atendimento!”
Aparentemente, a acção é de fiscalização e transparência. No entanto, quando o acto se torna um show público de humilhação, mais voltado para gerar curtidas do que para corrigir problemas estruturais, deixa de ser gestão pública e passa a ser espetáculo político.
Como advertia Hannah Arendt (1970), a política perde o seu valor quando o espaço da acção é ocupado pelo teatro da visibilidade. Já Pierre Bourdieu (1991) chamava a isso “a encenação simbólica do poder”, na qual o governante usa a exposição pública para reforçar autoridade e carisma, mesmo que isso esvazie o conteúdo ético da sua função.
3. A Política dos Likes e o Populismo Digital
A política de likes tornou-se uma tendência preocupante na governação contemporânea. O gestor público moderno, influenciado pela lógica das redes sociais, começa a medir o seu desempenho não pelos resultados da sua gestão, mas pelo engajamento virtual que consegue gerar.
Como observa Jürgen Habermas (1990), quando a esfera pública é dominada pelo espetáculo, o debate racional e a substância política perdem espaço. O cidadão deixa de ser participante e passa a ser espectador.
Essa prática é perigosa, pois cria uma ilusão de governação activa, enquanto, na verdade, o foco se desloca para a construção de imagens pessoais e narrativas de autoridade. O gestor transforma-se num influencer político e o serviço público vira cenário de lives e stories cuidadosamente ensaiadas.
4. A Fronteira Ética da Comunicação Pública
Não se trata de condenar o uso das câmaras. Elas são, sem dúvida, um instrumento poderoso de transparência e prestação de contas (accountability). O problema reside na intenção comunicacional e no alvo da mensagem.
Quando a comunicação serve para informar, educar e prestar contas, estamos diante de marketing governamental legítimo. Mas quando a câmara serve para construir carisma político, criar polémica e reforçar vaidades pessoais, estamos perante um abuso simbólico da comunicação pública.
Como bem lembra Kotler (1999), “o marketing no governo deve ser centrado no cidadão, e não no governante”.
5. Quando a Comunicação é Verdadeira
Uma comunicação pública de qualidade é aquela que:
Explica os problemas com dados e contexto;
Apresenta soluções e metas de melhoria;
Valoriza os profissionais e o serviço público, em vez de os expor;
Humaniza o Estado, mostrando compromisso com o bem-estar dos cidadãos.
Em vez de ralhar diante das câmaras, um verdadeiro gestor deve ouvir, dialogar e corrigir com serenidade, transformando a sua presença em acto de liderança, não em palco de vaidade.
Finalmente, é importante referir que as redes sociais podem e devem ser aliadas da boa governação, mas não podem substituir a essência do serviço público. O governante que governa para a câmara está condenado a viver de aparências, e o cidadão que o aplaude corre o risco de se tornar cúmplice da superficialidade política.
Em suma, governar é servir, comunicar é prestar contas, e filmar deve ser apenas consequência da transparência, não da vaidade.
O povo precisa de líderes que trabalhem com seriedade, não de actores públicos à procura de likes.
Fonte: Portal de Angola
