O recente comunicado da Presidência da República, informando que João Lourenço não participará pessoalmente no Congresso Nacional da Reconciliação, promovido pela CEAST, por razões de agenda e compromissos de Estado, poderia passar despercebido ao olhar comum. No entanto, para quem observa a política com o olhar da ciência e da estratégia, este gesto é carregado de sinais simbólicos, cálculos políticos e prudência institucional.
A política, como bem observou Raymond Aron (1962), não é apenas a arte do possível, mas também a arte do gesto interpretado. E neste gesto, aparentemente simples, João Lourenço reafirma o seu estilo de governação: discreto, racional e estrategicamente ponderado. Ele sabe que, num país de tradição religiosa profunda como Angola, a Igreja Católica não é apenas um espaço de fé, mas um instrumento de influência moral e legitimidade social. Assim, ausentar-se fisicamente de um evento religioso não significa afastamento político; pelo contrário, é uma demonstração de maturidade e cálculo estratégico.
1. A prudência do estadista e o poder dos símbolos
Ao delegar a sua representação a um membro do Executivo, o Presidente da República reafirma o princípio da institucionalidade do poder. Ele não se coloca acima das instituições, mas faz-se representar por elas. Trata-se de um gesto que revela respeito hierárquico, disciplina simbólica e contenção política.
O filósofo Max Weber (1922), em Economia e Sociedade, descreveu a política moderna como uma tensão constante entre o carisma e a burocracia. João Lourenço opta pela segunda: pela racionalidade institucional, pela formalidade que protege o Estado do personalismo. Ele entende que o poder presidencial não se mede pela presença física, mas pela força da estrutura que o sustenta.
Este posicionamento contrasta fortemente com o comportamento de muitos líderes africanos que buscam legitimar-se através da espiritualidade pública, confundindo fé com poder. Lourenço, ao contrário, adopta a postura de estadista moderno, que respeita a influência da Igreja, mas mantém as fronteiras entre o sagrado e o político claramente definidas.
A ausência controlada de João Lourenço é, portanto, uma presença simbólica. É a aplicação prática da lição de Machiavelli (1532) em O Príncipe: “não é necessário que o governante tenha todas as virtudes, mas é indispensável que pareça tê-las”. Ao manter-se afastado, mas representado, o Presidente preserva a sua imagem de equilíbrio e neutralidade, evitando a politização da fé.
2. Adalberto Costa Júnior: a fé como narrativa de poder
Do outro lado do tabuleiro, o Presidente cessante da UNITA, Adalberto Costa Júnior, trilha uma via distinta. Formado num contexto religioso, com passagem por seminário menor, ele compreende o poder da linguagem espiritual. A sua aproximação à CEAST e o diálogo aberto com figuras do clero católico traduzem uma estratégia política de proximidade emocional e moralização do discurso público.
Adalberto Costa Júnior procura apresentar-se como o político ético, aquele que traduz a fé em acção social e a moral em programa político. A sua retórica é impregnada de espiritualidade e de apelo à consciência cristã. É, como diria Pierre Bourdieu (1991), a transformação do capital simbólico em capital político. Ao associar-se à Igreja, o líder da oposição converte o prestígio moral em instrumento de credibilidade e autoridade pública.
Contudo, a sua força é também a sua vulnerabilidade. Ao vincular-se demasiado à esfera religiosa, corre o risco de confundir a espiritualidade com o populismo moral, algo que pode restringir o seu discurso num país plural, onde o poder político deve governar tanto os crentes como os descrentes.
Enquanto Adalberto Costa Júnior fala a linguagem da fé para mobilizar consciências, João Lourenço fala a linguagem do Estado para preservar o equilíbrio. Um apela ao coração, o outro à razão. Um age pela devoção, o outro pela disciplina. São duas estratégias distintas de liderança: a moral e a institucional, ambas legítimas, mas de naturezas profundamente diferentes.
3. O equilíbrio entre o trono e o altar
A relação entre o Estado e a Igreja Católica em Angola tem sido historicamente delicada. Desde a independência, as duas instituições têm partilhado responsabilidades no domínio social, educativo e moral. Contudo, a fronteira entre cooperação e interferência é ténue.
O cientista político Samuel Huntington (1991) advertiu que a estabilidade política requer “institucionalizar o conflito e domesticar a paixão”. João Lourenço parece compreender essa máxima ao cultivar uma relação de respeito mútuo, mas não de dependência, com a Igreja. Ele reconhece a importância da fé na construção da paz social, mas preserva a laicidade do Estado como fundamento da unidade nacional.
Por sua vez, Giovanni Sartori (1997) enfatiza que a democracia se constrói em “equilíbrios e contrapesos simbólicos”. O Presidente, ao agir com sobriedade e distanciamento, mantém o equilíbrio entre o trono e o altar, entre o poder político e o poder espiritual. O seu gesto revela um entendimento sofisticado de que a Igreja deve ser parceira moral, não árbitro político.
Outros líderes, tanto da oposição como da esfera governamental, ainda não alcançaram esse nível de equilíbrio. Alguns buscam o apoio do clero como atalho para a legitimidade; outros ignoram a sua influência social. João Lourenço posiciona-se num ponto intermédio: o ponto da governação prudente, onde o diálogo é constante, mas o controlo simbólico é preservado.
4. Conclusão: o estadista e o apóstolo
Em última instância, o episódio do Congresso da CEAST é mais do que uma questão de agenda presidencial: é uma aula prática de estratégia política e simbólica. João Lourenço demonstra que o poder, quando exercido com inteligência e sobriedade, pode ser discreto e, ainda assim, profundamente influente.
Enquanto Adalberto Costa Júnior representa a fé que deseja transformar o Estado, João Lourenço representa o Estado que dialoga com a fé sem se deixar transformar por ela. O primeiro mobiliza a emoção, o segundo estrutura o poder. O primeiro evangeliza a política, o segundo politiza a fé com respeito institucional.
Nas palavras de Antonio Gramsci (1930), “todo poder é pedagógico”. E João Lourenço, com este gesto, ensina que a verdadeira autoridade não se impõe pela presença constante, mas pela coerência e pelo equilíbrio entre a razão de Estado e a sensibilidade social.
No tabuleiro político da fé, o Presidente da República reafirma-se como o estratega silencioso, que sabe que o poder, para ser duradouro, precisa mais de contenção do que de carisma, mais de prudência do que de aplausos. Em tempos de incerteza, ele demonstra que a liderança eficaz é aquela que consegue dialogar com o altar sem se ajoelhar perante ele.
Fonte: Portal de Angola