Juventude sem casa: auto-construção é o nome bonito da exclusão habitacional em Angola

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1. Introdução: juventude, cidade e habitação

A juventude angolana vive num país em acelerada transformação urbana. As estatísticas indicam que mais de 60% da população tem menos de 25 anos, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística de Angola (INE). No entanto, a precariedade laboral, o défice habitacional e a inacessibilidade ao crédito tornam o direito à casa própria um sonho cada vez mais distante.

A prática da auto-construção, entendida como a construção ou ampliação da própria habitação pelos futuros moradores ou sob a sua liderança, emerge como uma estratégia legítima e cada vez mais relevante. Como assinalam investigadores sobre habitação em África, “self-building is usual across all income groups and fuels the growth of all types of urban areas” (Owusu et al., citado em Home-grown Growth in African Cities, London School of Economics, 2022).

Apesar do seu potencial, a auto-construção enfrenta barreiras especialmente graves para a juventude em Angola, o que exige uma reflexão profunda, de natureza política, social e económica.

2. O contexto angolano da auto-construção

Em Maio de 2023, o Governo angolano aprovou o programa de Auto-Construção Dirigida, através do Ministério das Obras Públicas, Urbanismo e Habitação (MINOPUH), que prevê a disponibilização de 910.600 lotes infraestruturados nas 18 províncias do país para cidadãos que pretendam construir a sua própria moradia.

Esta iniciativa reconhece que “o Estado não pode sozinho satisfazer todo o défice habitacional” e que a participação directa dos moradores, sobretudo dos jovens, deve ser integrada como parte da solução.

Contudo, no terreno, persistem lacunas: muitos lotes não estão totalmente equipados com infraestrutura, muitos jovens não conseguem aceder ao programa por falta de requisitos ou capital mínimo, e o financiamento e a assistência técnica continuam praticamente inexistentes.

3. O desafio da juventude no acesso à habitação por auto-construção

3.1 Desemprego, informalidade e precariedade económica

A juventude angolana enfrenta elevados índices de desemprego e de informalidade. Sem rendimentos regulares, torna-se difícil aceder a crédito, financiar a construção ou mesmo juntar os recursos mínimos para adquirir materiais. Como refere Zulu (2016) no seu estudo sobre a África do Sul, “low-cost housing projects can be used as a platform to create employment, empower community and provide skills for sustainable livelihood”.

Tal como o emprego requer políticas activas, também a habitação exige que os jovens tenham rendimentos ou expectativas de renda para poder investir nas suas casas. Sem essa base, muitos jovens ficam à margem dos programas públicos e recorrem a soluções inacabadas ou informais, com todos os riscos que isso implica.

3.2 Acesso limitado à terra legalizada e à infraestrutura

Outro obstáculo estrutural é o acesso a terrenos legalizados e servidos. Muitas zonas de urbanização rápida em Angola situam-se em áreas periurbanas, com acesso limitado a água, saneamento, energia e transporte. Um estudo continental constatou que “our physical measures of informality are systematically associated with many indicators of low human development” (Bettencourt & Marchio, 2023).

Para o jovem construtor, um terreno sem infraestrutura representa custos acrescidos, atrasos e riscos elevados. Essas barreiras tornam-se ainda maiores para quem dispõe de menos capital e de menor apoio institucional.

3.3 Falta de financiamento adaptado à realidade juvenil

O sistema bancário e o crédito formal continuam pouco ajustados à realidade dos jovens, pois exigem garantias, rendimentos fixos e historial de crédito. Em muitas experiências africanas, o modelo de auto-construção é incremental, ou seja, “households plan and build their own houses depending on their sweat and equity contribution” (Dlamini, 2023).

Este modelo requer poupanças prévias ou apoio familiar, o que está fora do alcance da maioria dos jovens, que vivem em situação de informalidade laboral. Assim, torna-se necessário “public finance for self-build housing” (Isandla Institute, 2023), ou seja, mecanismos públicos de financiamento adaptados à realidade da auto-construção juvenil.

3.4 Falta de assistência técnica, know-how e qualidade construtiva

Mesmo quando o jovem consegue um lote e inicia a construção, a ausência de apoio técnico torna o processo arriscado. O relatório da Isandla Institute destaca que “people do not only need money to build better and meet safety standards; they also need technical advice and support on how to build and augment dwellings over time”.

Sem este apoio, muitas casas auto-construídas apresentam deficiências estruturais e ficam vulneráveis a chuvas, erosões e colapsos. Para a juventude, que já enfrenta limitações financeiras, a falta de assistência técnica perpetua a ideia de “casa inacabada” e reduz a qualidade de vida.

4. A auto-construção como oportunidade de cidadania e mobilidade

Apesar dos desafios, é necessário reconhecer que a auto-construção representa uma poderosa via de afirmação cidadã para os jovens: uma forma de ocupar o espaço urbano, construir património e fortalecer a identidade social. O estudo da LSE sublinha que “self-organised construction creates substantial opportunities for income, employment and asset generation”.

Quando o jovem constrói a sua própria casa, ele não apenas garante abrigo, mas também cria valor, gera potencial de arrendamento ou rendimento e assegura um legado para a família. Com o devido apoio, a auto-construção pode transformar-se num instrumento de mobilidade social, de empoderamento económico e de inclusão urbana.

5. Lições de outros contextos africanos

Diversos países africanos têm experimentado modelos inspiradores para Angola.

Na Namíbia, o programa Build Together Programme demonstrou como a habitação de auto-ajuda, aliada à titulação e ao apoio técnico, melhora significativamente as condições de vida.

Na África do Sul, a consolidação de habitação de baixa renda por auto-construção (self-help consolidation) revelou tanto as dificuldades como o potencial do modelo (Ojo-Aromokudu & Loggia, 2017).

No Ruanda, o estudo Local Materials, Global Ambitions: Self-Building Practices in Rwandan Housing Projects mostra que a auto-construção não é apenas um recurso dos mais pobres, mas também uma escolha activa de autonomia e dignidade.

Estas experiências destacam factores essenciais: acumulação de capital próprio, apoio institucional, regularização fundiária, infraestrutura básica, formação técnica e reconhecimento jurídico da auto-construção como parte legítima da política habitacional.

6. Caminhos para Angola: uma política juvenil de habitação por auto-construção

Para que a auto-construção juvenil se torne uma estratégia eficaz em Angola, propõem-se as seguintes linhas de política pública:

Terrenos infraestruturados e prioridade juvenil: atribuição de lotes servidos a jovens entre 18 e 35 anos, com critérios de acesso simplificados e custos acessíveis.

Linhas de crédito habitacional juvenil adaptadas: criação de microcrédito e subsídios estatais para apoiar a auto-construção incremental, reconhecendo o perfil informal de rendimento juvenil.

Centros de apoio técnico à construção juvenil: oferta de formação e assistência em desenho, materiais, técnicas de baixo custo e segurança, inspirada nos Housing Support Centres da África do Sul.

Incentivos à produção local e ao emprego juvenil: programas que incentivem os jovens a produzir materiais sustentáveis, como blocos de terra comprimida, à semelhança do projecto Youth Challenge – Green Generation da UNICEF Angola.

Reconhecimento jurídico da auto-construção: simplificação dos processos de legalização fundiária e integração da construção incremental no sistema formal de habitação.

Articulação entre políticas de habitação e emprego juvenil: promoção de sinergias entre programas de habitação e de formação profissional, como o Crescer Project do Banco Africano de Desenvolvimento em Angola.

7. Conclusão: reconstruir a habitação como acto de emancipação juvenil

A juventude angolana encontra-se na encruzilhada entre o desafio e a oportunidade. O fenómeno da auto-construção revela, ao mesmo tempo, as falhas do sistema habitacional e o poder transformador dos jovens.

Como afirmou o arquitecto e urbanista português João Filgueiras Lima (“Lelé”), “a habitação é o alicerce da cidadania”. Esta ideia ecoa fortemente em Angola, pois construir a própria casa é afirmar a própria cidadania.

Se o Estado limitar-se a fornecer habitações prontas, corre o risco de excluir a juventude dos processos produtivos e de aprendizagem. Porém, se integrar a auto-construção assistida na estratégia nacional de habitação, estará a transformar jovens construtores em agentes de mudança urbana.

No fim, não se trata apenas de erguer paredes, mas de empoderar uma geração, garantindo-lhe o direito de construir o seu futuro com orgulho, segurança e dignidade.

Como lembrou John Turner (1976): “As pessoas não são o problema da habitação, elas são a solução.”

Que as políticas públicas angolanas reconheçam esta verdade e a traduzam em acções concretas.

Fonte: Portal de Angola

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