1. Um acto simbólico que reacende um velho debate
No dia 26 de Junho de 2025, o Serviço de Investigação Criminal (SIC) em Benguela procedeu à incineração de 2.714 quilogramas de liamba e 343 plantas do mesmo produto, acto testemunhado por autoridades judiciais e policiais no âmbito das comemorações do Dia Internacional de Luta contra as Drogas. O gesto, embora carregado de simbolismo institucional, reacende um debate antigo mas ainda urgente: deve Angola continuar a criminalizar a canábis, ou é hora de repensar esta política à luz das experiências internacionais?
A pergunta não é meramente retórica. Num mundo em que a descriminalização e a regulação da canábis se tornaram temas de políticas públicas sérias e embasadas em evidências científicas, Angola permanece entre os países que ainda mantêm uma abordagem penal e repressiva, modelo que, segundo vários estudos, não tem reduzido o consumo nem o tráfico.
2. A herança jurídica e o paradigma punitivo
A política angolana sobre drogas deriva da Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961, instrumento jurídico internacional que classificou a canábis como substância ilícita sem valor medicinal reconhecido. Esta perspectiva foi reforçada por décadas de políticas repressivas em todo o mundo, impulsionadas pela chamada guerra às drogas, promovida sobretudo pelos Estados Unidos nas décadas de 1970 e 1980.
Contudo, como alerta o Relatório Mundial sobre Drogas (UNODC, 2023), “as estratégias baseadas exclusivamente na punição não reduziram o consumo global de drogas, mas agravaram problemas sociais, económicos e de saúde pública”. Em Angola, o consumo e o comércio ilícito continuam activos, apesar das acções repressivas, o que levanta dúvidas sobre a eficácia real da criminalização.
3. O caso português: da punição à prevenção
O exemplo português é frequentemente citado como uma das reformas mais bem-sucedidas no mundo no que diz respeito às políticas sobre drogas. Em 2001, Portugal optou por descriminalizar o consumo de todas as substâncias, transferindo o foco da repressão policial para a saúde pública e a reintegração social. Segundo Greenwald (2009), investigador do Cato Institute, esta medida resultou numa “redução drástica das infecções por HIV, da mortalidade por overdose e do encarceramento de consumidores ocasionais”.
Importa sublinhar que descriminalizar não é legalizar. Em Portugal, o consumo continua a ser desencorajado, mas o utilizador é encaminhado para uma Comissão de Dissuasão da Toxicodependência, onde recebe apoio psicológico e médico em vez de uma sentença penal. O país conseguiu equilibrar a dimensão humana com a necessidade de controlo social, demonstrando que educar é mais eficaz do que punir.
4. Da repressão à regulação: lições do Uruguai e do Canadá
Outros países foram além da descriminalização. O Uruguai, em 2013, tornou-se o primeiro Estado do mundo a legalizar integralmente a produção e venda de canábis, com controlo estatal rigoroso. Conforme observa Pardo (2014), “o objectivo central do modelo uruguaio foi retirar o monopólio económico do narcotráfico e transferi-lo para o Estado, garantindo segurança e qualidade ao consumidor”.
No Canadá, o processo foi semelhante. A Health Canada (2022) reporta que, após a legalização, houve redução das vendas ilegais, aumento da arrecadação fiscal e criação de milhares de empregos formais. A política canadiana baseia-se em três princípios: educação, regulação e protecção da saúde pública, mostrando que a canábis pode ser tratada como questão de política económica e de saúde, e não de segurança.
5. África e o dilema da repressão
Enquanto o mundo ocidental avança para políticas mais equilibradas, muitos países africanos permanecem presos ao modelo repressivo. A Comissão Global sobre Políticas de Drogas (2018) sublinha que, em África, “as políticas punitivas agravam as desigualdades, alimentam o encarceramento de jovens e consomem recursos estatais que poderiam ser aplicados em saúde e educação”.
Em Angola, o SIC reporta a detenção de 155 cidadãos por crimes ligados à liamba, dos quais 26 são mulheres. Muitos desses casos envolvem pequenos consumidores ou vendedores de rua, e não grandes redes de tráfico. Esta realidade reforça o alerta de Becker (1963), que argumenta que “a criminalização de comportamentos menores cria rótulos sociais duradouros e alimenta a exclusão”, transformando pequenos infractores em delinquentes reincidentes.
Além disso, a liamba possui uma dimensão histórica e cultural no continente. Em regiões rurais, é cultivada há séculos para fins medicinais, rituais e económicos. Ignorar esta realidade é fechar os olhos ao contexto africano. Como defende Mbaku (2020), “qualquer política de combate às drogas em África deve compreender as dinâmicas socioeconómicas locais, sob pena de ser ineficaz e socialmente injusta”.
6. O custo social da criminalização
A política de tolerância zero tem custos elevados, não apenas financeiros, mas também humanos. A manutenção de prisões superlotadas, a estigmatização dos jovens e o impacto nas famílias e comunidades vulneráveis são consequências que raramente entram nas estatísticas oficiais.
O Relatório da OMS (2019) reconhece que “a criminalização do consumo gera medo e impede os dependentes de procurarem tratamento médico”, perpetuando o ciclo de marginalização. Em vez de um Estado protector, muitos encontram um sistema que castiga a pobreza e a ignorância.
Em países onde a canábis foi regulada, houve redução da violência associada ao tráfico e melhoria na saúde pública. O contraste sugere que Angola precisa repensar urgentemente o equilíbrio entre repressão, prevenção e tratamento.
7. O argumento económico: da destruição à tributação
Outra dimensão frequentemente ignorada é a económica. A canábis movimenta milhares de milhões de dólares anuais no mercado global. Nos Estados Unidos, por exemplo, as receitas fiscais provenientes da legalização ultrapassaram 13 mil milhões de dólares em 2023, segundo o U.S. Cannabis Council.
Regulamentar o cultivo e a venda poderia representar, para países africanos como Angola, nova fonte de arrecadação fiscal e alternativa agrícola sustentável. O Estado poderia converter o actual mercado ilícito num mercado controlado e produtivo, gerando empregos, arrecadação e reduzindo o poder das redes criminosas.
Como sintetiza Zobel (2021), “a regulação é o caminho entre o caos do mercado ilegal e o fracasso da proibição”. Este argumento económico, combinado com o humanitário, reforça a urgência de debater modelos alternativos de política pública.
8. A urgência de um novo olhar angolano
O contexto angolano exige soluções próprias, mas não pode ignorar a experiência global. O Estado deve apostar em educação preventiva, tratamento acessível e políticas de redução de danos, substituindo o enfoque policial por uma abordagem integrada de saúde, segurança e desenvolvimento comunitário.
Transformar o problema em tabu é um erro estratégico. A liamba, sendo uma realidade social, deve ser abordada com racionalidade e evidência científica. O debate público, com participação de médicos, juristas, sociólogos e líderes comunitários, é essencial para romper com décadas de preconceito e abrir caminho para políticas mais humanas e eficazes.
9. Conclusão: do fogo da repressão à luz da consciência
A incineração de liamba em Benguela é um gesto visível de autoridade, mas, simbolicamente, também representa a queima de oportunidades de reflexão nacional. Enquanto se queimam toneladas de plantas, continuam a crescer os desafios do desemprego juvenil, do tráfico e da exclusão social.
Angola precisa acender a luz da consciência política, substituindo o fogo da repressão por políticas de conhecimento, prevenção e inclusão. É hora de compreender que a guerra às drogas não se vence com batalhas punitivas, mas com inteligência, compaixão e visão estratégica.
Como afirma Kleinman (2019), “o verdadeiro progresso das sociedades modernas está em tratar as vulnerabilidades humanas com empatia, e não com punição”. Que Angola possa, assim, caminhar para uma nova política de drogas, onde o equilíbrio entre segurança e dignidade humana seja o princípio orientador.
Fonte: Portal de Angola