Em 2020, o Brasil deu ao mundo uma lição de ousadia e competência técnica ao lançar o Pix, um sistema de pagamentos instantâneos que, em poucos meses, revolucionou o modo como milhões de pessoas movimentam dinheiro. A criação, idealizada e implementada pelo Banco Central do Brasil (BCB), demonstrou que a inovação tecnológica pode ser conduzida pelo Estado quando este confia na capacidade dos seus técnicos e prioriza o bem comum sobre o capital político.
O ex-presidente Jair Bolsonaro tentou, por diversas vezes, reivindicar o título de “pai do Pix”, mas, como ironiza o jornalista Henrique Nunes (2025), “Bolsonaro está mais próximo de ser o pai da mentira do que o pai do Pix”. Na realidade, o sistema foi gestado durante o governo de Dilma Rousseff, amadurecido sob Michel Temer e lançado na gestão de Bolsonaro em 2020, uma sequência que ilustra um raro exemplo de continuidade de políticas públicas no Brasil. O economista Ilan Goldfajn, então presidente do BCB, foi o verdadeiro mentor técnico da ideia, que ganhou forma sob a liderança de Roberto Campos Neto.
Segundo o próprio Banco Central (nota institucional de 2022), “as especificações, o desenvolvimento do sistema e a construção da marca realizaram-se entre 2019 e 2020, culminando com o seu lançamento em Novembro de 2020”. Esta frase sintetiza a dimensão institucional da inovação: o Estado brasileiro conseguiu criar um produto de impacto nacional sem depender da vontade política de um governante específico. Essa é a primeira grande lição para Angola, e talvez a mais urgente.
1. O valor da técnica acima da política
Em Angola, as reformas tecnológicas e financeiras raramente sobrevivem às mudanças de liderança. Cada novo governo tende a substituir projectos técnicos sólidos por programas politizados e efémeros. Pierre Rosanvallon (2006) lembra que “a democracia moderna precisa de uma administração pública que funcione como guardiã da racionalidade e da imparcialidade técnica”. No caso brasileiro, o Banco Central, com autonomia administrativa, conseguiu proteger o Pix da instabilidade política.
Já em Angola, o Banco Nacional de Angola (BNA) tem avançado em algumas frentes, como o Sistema de Pagamentos de Angola (SPA) e a modernização bancária, mas o ritmo ainda é tímido. O país carece de uma estratégia de digitalização financeira verdadeiramente inclusiva, que envolva não apenas os bancos, mas também o comércio informal, as microempresas e as populações rurais.
O professor Joseph Stiglitz (2017), Prémio Nobel da Economia, defende que “a inclusão financeira é o primeiro passo para uma economia mais justa e produtiva”. Sem acesso rápido, seguro e gratuito a instrumentos digitais de pagamento, milhões de angolanos continuarão presos à economia informal e ao dinheiro físico, o que perpetua a exclusão e a pobreza.
2. A China e o poder da integração digital
Se o Brasil representa o exemplo da inovação pública bem executada, a China é o símbolo da integração total entre tecnologia e sociedade. Em poucos anos, plataformas como WeChat Pay e Alipay substituíram o dinheiro físico e criaram uma economia digital robusta, baseada na conveniência, rastreabilidade e eficiência. Segundo Yuval Noah Harari (2018), “a China é o exemplo mais avançado de uma sociedade onde o Estado e a tecnologia caminham juntos para moldar o comportamento económico e social”.
A revolução chinesa não foi apenas tecnológica, foi civilizacional: os pagamentos digitais tornaram-se um elemento de cidadania. Desde o agricultor no interior até ao executivo nas metrópoles, todos participam do mesmo ecossistema digital. Essa democratização das finanças impulsionou o crescimento do PIB e reduziu drasticamente o uso de dinheiro vivo, com ganhos significativos para a segurança e a transparência fiscal.
Angola poderia inspirar-se nesse modelo, adaptando-o à sua realidade. O país possui uma elevada penetração de telemóveis e uma juventude digitalmente activa, um terreno fértil para soluções financeiras modernas. O problema, contudo, está na falta de vontade política e de coordenação institucional.
Como escreve Manuel Castells (2009), “a tecnologia não é o motor da mudança, mas o instrumento de uma vontade colectiva que decide mudar”. Sem essa vontade, continuaremos a assistir a promessas de “bancarização” e “inclusão digital” que nunca saem do discurso.
3. O exemplo brasileiro como caminho
O Pix brasileiro mostrou que é possível construir soberania tecnológica sem depender de multinacionais ou de bancos privados. Em apenas três anos, o sistema superou 150 milhões de utilizadores e movimentou mais de 20 biliões de reais, segundo dados do Banco Central do Brasil (2023). O que começou como um projecto técnico transformou-se num fenómeno social e económico, com impacto directo na redução de custos bancários, na formalização de pequenos negócios e na agilidade de serviços públicos.
O economista brasileiro Ricardo Amorim (2021) destacou que “o Pix é uma das políticas públicas mais bem-sucedidas da história económica do Brasil, porque uniu inovação, inclusão e eficiência”. Este modelo poderia ser replicado, com as devidas adaptações, em países como Angola, onde a burocracia bancária ainda é um obstáculo ao desenvolvimento.
4. Os ganhos concretos para Angola
A criação de um sistema angolano de pagamentos instantâneos traria ganhos profundos e estruturantes para a economia nacional. Em primeiro lugar, reduziria drasticamente o custo das transacções financeiras, hoje penalizadas por taxas bancárias elevadas, tornando o uso do sistema financeiro mais acessível para os cidadãos comuns e pequenos empreendedores. Em segundo lugar, promoveria a inclusão financeira, permitindo que milhões de angolanos que vivem do comércio informal ou em zonas rurais passassem a integrar o sistema digital, movimentando dinheiro em tempo real, com segurança e sem burocracia. Em terceiro lugar, melhoraria a arrecadação fiscal e o controlo da economia informal, já que as transacções digitais são rastreáveis e transparentes, fortalecendo as finanças públicas e reduzindo a corrupção. Finalmente, estimularia a inovação e o empreendedorismo digital, criando oportunidades para fintechs, serviços de microcrédito, pagamentos móveis e plataformas de comércio electrónico. Em suma, um “Pix angolano” seria mais do que uma ferramenta de pagamento: seria uma alavanca de transformação económica, social e institucional, capaz de acelerar o crescimento sustentável e aproximar Angola das economias mais competitivas do continente.
5. Angola precisa do seu próprio “Pix”
Num país em que as filas nos bancos ainda são parte da rotina e em que a transferência de dinheiro pode levar dias, criar um sistema de pagamentos instantâneos nacional é mais do que uma inovação, é uma necessidade estratégica. O E-Kwanza, que deveria ser o primeiro passo nessa direcção, permanece engavetado. Falta liderança técnica, coordenação institucional e, sobretudo, visão estratégica.
O professor Peter Drucker (1999) advertia que “a maior ameaça ao sucesso numa era de mudança é a arrogância da estabilidade”. Angola parece presa a essa arrogância, resistindo à digitalização como se esta fosse um luxo de economias avançadas. Mas a verdade é o contrário: os países em desenvolvimento precisam mais da inovação do que os países ricos, porque ela reduz desigualdades e cria novas oportunidades económicas.
O exemplo do Pix ensina que não é preciso ter uma economia poderosa para inovar, é preciso ter coragem institucional e confiança na ciência. O Brasil criou uma infraestrutura digital inclusiva sem depender de Silicon Valley, e a China demonstrou que a transformação tecnológica pode ser liderada pelo Estado sem eliminar o mercado.
Angola tem as condições básicas: juventude conectada, expansão da internet móvel e um sistema financeiro em crescimento. Falta apenas um acto de coragem, a decisão política de colocar a técnica acima da vaidade.
Finalmente, é importante reconhecer que Angola deve olhar para o Brasil e a China não com inveja, mas com inteligência. O Pix é a prova de que a inovação pode nascer do serviço público quando há autonomia técnica, estabilidade institucional e foco na inclusão. A China, por sua vez, demonstra que o Estado pode usar a tecnologia para organizar e dinamizar a economia.
Como escreveu Amartya Sen (1999), “o desenvolvimento é, antes de tudo, a expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”. Garantir que cada angolano possa pagar, receber e empreender com um simples clique é, portanto, um acto de liberdade económica e de justiça social.
Angola não precisa de reinventar a roda, precisa apenas de fazê-la girar.
Fonte: Portal de Angola